domingo, 14 de outubro de 2007

O cinema ainda está na pré-história

Entrevista interessante publicada na Bravo! deste mês...
Esqueça Hitchcock, Spielberg, Fellini, Bergman. Segundo o diretor Peter Greenaway, tudo isso é apenas um prólogo para o verdadeiro cinema que começa agora, com as tecnologias digitais
* por Philippe Barcinsky

À semelhança de um profeta apocalíptico, o diretor britânico Peter Greenaway, famoso por filmes como O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante (1989) e O Livro de Cabeceira (1996), anuncia há mais de dez anos a morte do cinema. Recentemente, no entanto, virou o presságio de ponta-cabeça, tornando-se defensor de uma hipótese mais inusitada e, num certo sentido, mais otimista: o cinema nunca existiu de fato. Seus primeiros 112 anos teriam sido apenas um prólogo patético, repleto de narrativas lineares e de cenas que funcionam como meras ilustrações de textos. Para reverter a situação, só haveria uma saída: as novas tecnologias digitais. "O cinema deverá começar para valer agora", proclama.
Convertido nos últimos tempos em multiartista, Greenaway traz a São Paulo neste mês, dentro do Festival Videobrasil, o que ele define como um "manifesto sobre o futuro do cinema": o projeto As Maletas de Tulse Luper, a respeito de um personagem que percorre episódios fundamentais da história do século 20 e depois desaparece, deixando 92 maletas com materiais que recolheu durante a jornada. No festival, o projeto será apresentado em três de seus desdobramentos: um fi lme de sete horas, uma exposição com as 92 maletas e uma performance de Greenaway como VJ, em que ele fará uma "discotecagem" de sons e imagens exibidas em múltiplas telas.
O cineasta de 65 anos também aproveitará a passagem pelo Brasil para negociar a produção de um filme a ser rodado na capital paulista, em torno de um gravurista holandês do século 16 chamado Hendrik Goltzius, conhecido por suas ilustrações eróticas de passagens bíblicas. Na entrevista a seguir, concedida a BRAVO!, Greenaway fala sobre o fim e o princípio do cinema.

BRAVO!: O que morreu exatamente no cinema?
Peter Greenaway: A bem da verdade, hoje tendo a achar que o cinema nunca esteve vivo. Tudo o que nós vimos até agora foram cento e tantos anos de texto ilustrado. Todas as histórias, as tramas, as narrativas vêm da livraria. Sejam as de Jean-Luc Godard, Martin Scorsese, Steven Spielberg ou Pedro Almodóvar. As séries Harry Potter e O Senhor dos Anéis, os maiores fenômenos recentes do cinema, são textos ilustrados, não filmes. Por que nós insistimos em refilmar sempre os clássicos da literatura? Qual é o sentido disso? O cinema é sobre imagens, não sobre texto. Eu estudei para ser pintor, preciso de imagens para começar meus filmes, não de palavras. Tenho dúvidas se, alguma vez, já vimos cinema puro. A maioria dos cineastas é visualmente analfabeta e não conhece a tradição de 8 mil anos de pintura. Além disso, o cinema é um entretenimento emburrecedor. E ninguém se esforça para mudá-lo, para torná-lo mais sofi sticado. Ele lida sempre com os mesmos padrões e gêneros: comédia, romance, ação, suspense.

Em que momento essa crise que você enxerga no cinema ficou mais aguda?
Os anos 90 presenciaram enormes revoluções tecnológicas, que têm a ver com dois fenômenos: interatividade e multimídia. O cinema, no entanto, não possui nem uma coisa nem outra. A geração do laptop não pode se excitar com algo que não é interativo ou multimídia. O cinema se tornou antiquado. Você senta num lugar escuro, mas o homem não é um animal noturno. Você olha em uma só direção, mas o mundo todo está à sua volta. Se você assiste a um longa numa sala de projeção, fica parado por duas horas, algo que não fazemos nem dormindo. Que coisa mais estúpida! A linguagem cinematográfi ca é extraordinária, mas é desperdiçada nas salas de projeção. Por sermos preguiçosos, temos um cinema patético e miserável, baseado na narrativa, que não consegue mais seduzir a nossa imaginação. Precisamos apagar isso e iniciar tudo de novo. Os 112 anos de cinema não passam de um mero prólogo. Com as novas tecnologias, poderemos começar a fazer cinema para valer.

Esse novo cinema será uma experiência coletiva?
Não necessariamente. Mas o cinema atual também não é uma experiência coletiva. Você cria uma relação particular com a tela, não se associa às pessoas a seu lado. O DVD é mais interessante, porque é como um livro. Posso vê-lo em casa, com monitores cada vez maiores, tomando meu café. Posso mudar as cores das imagens, o formato, e posso parar o filme quando quiser. Esse tem de ser o futuro do cinema para mim. O curioso é que o futuro já está se desenhando. Moro hoje em Amsterdã, na Holanda, país que tem as piores estatísticas cinematográficas do mundo. Em média, cada holandês vai ao cinema uma vez a cada dois anos. Mas isso não quer dizer que a tela não o seduza. Ele vê cinema no ambiente doméstico, sob seu inteiro controle. Se quero ir a um entretenimento público, vou ao teatro, que é mais interessante porque é ao vivo, em três dimensões. Ou, melhor ainda, vou à ópera, que conta também com as emoções transmitidas pela música. Na performance como VJ que farei em São Paulo, procuro levar em conta essas questões. Trata-se de uma ação ao vivo, com muita energia, que não se baseia em texto. Não há uma estrutura narrativa ali, a forma é totalmente livre. Também encorajo as pessoas a dançar. Há um aspecto de discoteca na coisa. Disponho de um teclado com 2 mil imagens e posso espalhá-las por um ambiente de 360 graus, em múltiplas telas. Estou muito animado com a idéia da performance, porque vejo nela um novo caminho para o cinema.

Existe hoje algum meio ou artefato que consiga agregar todas essas experiências?
Eu descobri há um ano, na internet, o Second Life. Você já está no Second Life? É fantástico. Um mundo virtual com teletransporte instantâneo e completo controle do ambiente. Um universo de 360 graus que possibilita ao internauta recriar a si mesmo como o Michael Jackson. É uma máquina dos sonhos, em que você pode não apenas ver seu fi lme preferido como interagir com ele. Quando ficar mais sofi sticado, o Second Life vai eliminar Hollywood do mapa.

Nunca produzimos tantas imagens quanto hoje, graças à disseminação de câmeras em celulares e de outros aparelhos de fácil acesso. O que você acha desse fenômeno?
Enquanto estamos aqui conversando, o mundo criou mais imagens que nos séculos 16 e 17 somados. Mais imagens em uma hora do que em dois séculos! De fato, quase todos possuem uma câmera hoje, mas provavelmente só há dez bons fotógrafos no mundo inteiro. Como se lida com essa equação? Não é só uma questão de tecnologia, é uma questão de ter ou não ter um olhar treinado.

Num mundo em que todos produzem imagens ordinárias, o papel de um cineasta é fazê-las extraordinárias?
Creio que é nossa obrigação, sim. Fazer com que o espectador e nós mesmos vejamos o mundo de outra forma e tornar o familiar não familiar. Despertar-nos para coisas que acreditamos nunca terem sido vistas. Essa sempre foi a obrigação dos pintores. Acho que também deve ser a dos cineastas.

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