quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Inclusão digital exige coerência pública

O Brasil está prestes a dar um grande salto. Para cima ou para baixo.
Tudo vai depender de como a próxima gestão do presidente Lula decidir tratar a questão da chamada inclusão digital. Apesar dos esforços de muitos gestores públicos para tentar elevar o combate a exclusão digital à condição de política pública, a multiplicidade de pequenas iniciativas, a ação dos "lobbies" e concepções equivocadas paralisaram a organização de um conjunto coerente de medidas de amplo alcance.
Imagine se a política pública educacional no Brasil fosse realizada da forma como o governo federal enfrenta o problema da exclusão digital. Provavelmente não teríamos avançado muito. No caso da educação, por mais problemas que existam, as competências estão minimamente estruturadas. Existe uma Lei de Diretrizes e Bases. É atribuição dos municípios organizar o ensino infantil e básico. É responsabilidade dos estados cobrir o ensino secundário, entre outras tantas decisões e parâmetros mínimos. Infelizmente, no caso da inclusão digital, o que prevalece são grandes superposições, de um lado, e enormes ausências, de outro.
O Ministério das Comunicações, logo no início da gestão do ministro Miro Teixeira, reorganizou o programa GESAC, que acabou ajudando a conectar escolas e telecentros já existentes. O então coordenador do GESAC tentou salvar um programa deixado pela gestão anterior que visava a usar a caríssima conexão por satélite para ligar de um a três computadores à internet.
Fez um trabalho gigantesco e trocou acessos individuais pela conexão de unidades de uso coletivo. Todavia, o Ministério das Comunicações não assumiu para si a organização da política de inclusão digital. Não resolveu o problema do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), nem produziu uma diretriz sobre qual deveria ser o papel de cada ministério e de cada esfera de governo. Muito menos pensou sobre como envolver as ONG e o setor privado.
Se a inclusão digital é política pública, ela deve ser coerente e organizada. Qual deve ser o papel do governo federal? No mínimo, deve garantir que a banda larga chegue a todos os municípios. Mas só isso? Qual deve ser o papel dos estados? E das ONG? E das operadoras de telefonia? Ou será que chegamos ao ponto de que uma política estatal deve ser feita na lógica caótica da disputa de mercado? Cada um faz o que quer? Os ministérios atendem ao que dá mais prestígio? Uma política pública assim só pode redundar em fracasso e desperdício de recursos escassos.
Outra coisa que paralisa uma política coerente é o mito de que um telecentro no interior do Piauí ou no norte de Minas tem de arrumar formas de auto-sustentar-se economicamente.Seria como estruturar uma política educacional nessas regiões carentes dizendo que as escolas infantis devessem ser sustentáveis. Seria o mesmo que o governo tivesse apenas erguido o prédio, trazido as carteiras, comprado uma quantidade de livros e materiais escolares e falasse: "Agora vocês da comunidade se virem e arrumem um jeito de pagar os professores e funcionários, pois já fizemos a nossa parte". Ainda bem que a educação não foi estruturada assim. Sabemos que os prédios e materiais não fazem uma escola.
Da mesma forma, computadores e conexão não fazem um telecentro, muito menos uma política de inclusão digital. Lamentavelmente, o governo Lula está repleto de lobistas que dizem: basta fazer parcerias com empresas de software proprietário e alocar computadores.
Esquecem que inclusão digital é um processo de capacitação maciça da população para a sociedade da informação. É óbvio que não haverá inclusão digital sem computadores e sem conexão, mas também não haverá inclusão sem recursos para a manutenção das unidades de acesso nas regiões carentes. É preciso formar monitores e remunerá-los para manter as unidades funcionando. Qualquer gestor público sabe que instalar um equipamento público é difícil e muitas vezes caro, entretanto, mais caro ainda é mantê-lo.
No caso da inclusão digital, os neoliberais e lobistas que andam pelos corredores do governo Lula querem inventar uma política pública em que o Estado vá reduzindo seu gasto até que não tenha que gastar quase nada. Brilhante e ao mesmo tempo inviável e paralisante. A política de inclusão digital do estilo "Jack, o estripador" ("vamos por partes") é errada. Só um último exemplo de descoordenação, neoliberalismo e idéias fora do lugar. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) está exigindo que as operadoras de telefonia implantem Postos de Serviços Telefônicos (PST) com alguns terminais de acesso à internet.
Ocorre que as operadoras poderiam fazer isto com as ONG, as ONG poderiam fazer parcerias com os governos estaduais e prefeituras para o pagamento de monitores e para implantá-los em locais já existentes, sem novos custos.Além disso, seria possível até usar o Computador para Todos nesses postos. Mas não foi isso que ocorreu. As operadoras terão de montar os postos e comprar um terminal que só é vendido por três empresas homologadas e que oferecem conexão em banda estreita.
Obviamente esses terminais são bem mais caros que computadores. Lamentável. Será que o presidente da República não poderia montar um Conselho Nacional para a Inclusão Digital, com representantes do mercado, da sociedade civil, dos estados e dos municípios, para acabar com este festival de incoerências e desperdícios?

Sérgio Amadeu da Silveira, Sociólogo, professor de pós-graduação da Faculdade Cásper Líbero e ex-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI).

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